.

5.12.07

VIDA É A HISTÓRIA ACONTECENDO...

"Há o supremo prazer físico de escrever!”

Anais Nin

Não é fácil criar vida da morte e do exílio. Mas mesmo assim nos surpreendemos com momentos de felicidade.

Aos nossos amigos, meus e do meu pai, que ficaram pelo caminho eu dedico todas as minhas lutas, e garanto que continuam junto comigo, fazendo parte da minha história.

Madrugada de cinco de dezembro de 2007. Faltam cinco dias para o meu aniversário. Faltam quinze horas para outro triste aniversário.

Às dezoito horas do dia cinco de dezembro de 1973, meu pai Joaquim Pires Cerveira, banido em 1970 e recém chegado de Santiago do Chile após participar da resistência em defesa do Governo da Unidade Popular de Salvador Allende, se dirigiu a um encontro com seu companheiro de Organização, também banido pela ditadura brasileira, João Batista de Rita Pereda.

Atropelado e seqüestrado com Pereda no centro de Buenos Aires pela Operação Condor, foram entregues a ditadura brasileira. Trinta e quatro anos se passaram e seus corpos nunca foram devolvidos.

Meu pai faria cinqüenta anos, nove dias depois de seu seqüestro. Pereda tinha vinte e cinco.

Queria poder dizer que tive uma infância tranqüila e tal e coisa, seria tão mais fácil. Não que eu não tenha gostado da minha infância e adolescência, mas foi muito conturbada e com alguns momentos dolorosos e confusos.

Até uns cinco anos vivi em várias cidades, meu pai era militar, mas também era do Partido Comunista Brasileiro.

1964 se abateu sobre minha família de forma definitiva. Esse ano mudou o rumo de nossas histórias. Éramos cinco. Um Pai, uma Mãe, dois filhos e uma filha e uma casa com jardim numa cidade fria, mas bonita, onde tínhamos muitos amigos, estudávamos e éramos muito felizes.

Meu pai no ano do Golpe civil-militar de 1964 exercia um Mandato Popular de Vereador pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Era a forma dos Comunistas concorrerem a eleições. Era uma coisa mais ou menos comum.

Meu pai teve seu Mandato cassado e seus Direitos Políticos suspensos por dez anos pelo Ato Institucional nº. 1. Nossa casa foi invadida, meu pai foi preso porque reagiu ao golpe.

Os dias foram passando e tudo piorando, eu fui crescendo e a cidade a casa o jardim, foram ficando para traz. Lembro a noite que minha mãe saiu da prisão em Curitiba, ela e meu irmão, na época, com 16 anos. Ela não disse nada, abriu a porta mala do carro, um corcel branco e jogou lençóis, roupas nossas. Entramos em casa (eu não sabia que era a última vez na vida que entrava na minha casa, via meu piano...) antes de sairmos ela pegou um batom vermelho e escreveu no espelho da minha penteadeira um recado para a repressão ditatorial que horas depois invadiria e saquearia a nossa casa. Ela escreveu: “hoje é meu dia amanhã será o teu...” Nunca foi o deles. Ela se enganou, pensou e disse para a gente que a ditadura não iria durar. Durou toda nossa adolescência e um pedaço de nossa vida adulta.

Na noite que fomos embora com companheiros do meu pai, eu não tinha a mínima idéia para onde estávamos indo, chegando à entrada do Rio de Janeiro, apareceram vários carros e muito rápido nossa família foi separada. Aí começou uma vida louca, morando em “aparelhos” usando nomes falsos, mentindo para escapar da repressão. Mas a gente estudava, que meu pai fazia questão, em colégios de apoiadores, aliados. Eu queria ser professora.

Então veio o ano de 1970, logo no início minha família foi toda presa e levada para o dói-códi na Rua Barão de Mesquita, um centro de torturas da ditadura. Meus dois irmãos também foram presos, um tinha 11 anos e o outro fez 18 anos preso. Eu não fui presa porque os companheiros do meu pai me esconderam, por 40 dias, até o seqüestro do Embaixador Alemão.

Meu pai foi banido para a Argélia, logo depois foi para a Europa, França.

Então mandou me buscar, fomos a Cuba e a vários países. Terminamos nos estabelecendo no Chile, que vivia o Governo da Unidade Popular de Salvador Allende e recebia muito bem os exilados políticos das ditaduras latino-americanas.

Quando vi meu pai a primeira vez, percebi as marcas da brutalidade das torturas que passou. Nunca conversamos sobre isso.

Meu pai não havia desistido de derrubar a ditadura brasileira e viajava muito, era muito próximo de Allende, íamos almoçar na casa dele com muita freqüência.

Eu estudava e a vida corria, gostava do Chile. Ainda queria ser professora e dava aulas de “português carioca” para minhas amigas. No Chile também usávamos identidades falsas por razões de segurança.

Em agosto de 1973, as coisas estavam muito ruins no Chile. Eu tinha já idade para perceber o que acontecia. Ouvia os discursos do Presidente e também ouvia meu pai e outros amigos de Allende pedindo que armasse o povo. Ele não fez isso. Houve uma primeira tentativa de golpe, que aparentemente foi sufocada pelo Chefe dos carabineiros (Guarda pessoal do Presidente) que era o General Augusto Pinochet, que também freqüentava os almoços de domingo na casa do Presidente em Lãs Condes.

VOLTANDO PARA CASA....

Perguntei a meu pai porque não íamos embora, ele respondeu que ficaríamos para ajudar a defender o Governo eleito democraticamente. Eu disse que tinha medo, ele me deu opções de ir para Cuba, onde eu tinha muitos amigos, filhos de exilados e cubanos também. Ou ir para a União Soviética, já que eu era bailarina desde pequena. Eu pedi para voltar ao Brasil, os companheiros do meu pai eram radicalmente contra, achavam que eu sabia demais.

Meu pai respeitou minha vontade, e me levou até o Uruguai, me colocou num ônibus para Porto Alegre. Novamente, eu tinha outra identidade que não era a minha, já que todos que voltavam do Chile eram presos. Mas eu era uma adolescente, e o tempo foi passando, nunca parei de estudar. Só voltaria a ver minha casa no Chile 20 anos depois.

Durante o golpe do Chile, meu pai e alguns amigos ficaram com o Presidente até os últimos instantes, então foram pela Cordilheira até Mendonça e de lá para Buenos Aires.

No Brasil, eu continuava meio escondida e tinha dificuldade de me readaptar. Tinha saudade do Chile.

No dia cinco de dezembro de 1973 meu pai foi seqüestrado pela Operação Condor em Buenos Aires e trazido para o Brasil, onde foi assassinado em 13 de janeiro de 1974 no dói-códi da Barão de Mesquita, no Rio de janeiro, tornando-se um desaparecido político.

Dali para frente, a vida se resumiu na busca da verdade e dos seus restos mortais. Junto com outras famílias, alguns ainda tinham a esperança de encontrar seus entes queridos vivos, inclusive minha mãe e irmãos acreditavam nisso.

Fui informada da morte do meu pai, por companheiros seus, quase imediatamente. Mas continuei as buscas junto com outros familiares.

Meus estudos não valiam muito, apenas o ginásio. Então tive de prestar exames para obter o certificado de 2º no Brasil. Eu tinha 16 anos, decidi me casar e entrar na Universidade.

Decidi Fazer o Curso de História. Fiz só três semestres, pois eu e outros colegas decidimos rodar um jornal e criar um DCE livre. Fomos intimados a prestar declarações no DOPS e ameaçados com o decreto 477.

Minha mãe contratou um advogado, Dr. Modesto da Silveira, que aconselhou a mim e ao colega mais envolvido trocarmos de curso antes de começar o inquérito administrativo.

Nós dois fomos fazer o curso de Economia, eu já tinha dois nenéns, e meu marido que era Economista da FGV, foi convidado para trabalhar numa multinacional. Começou então um ciclo de muitas viagens em minha vida, mas entre idas e vindas (sempre voltávamos ao Rio de Janeiro por um tempo) me formei e queria dar aulas, mas não tinha licenciatura.

Fui fazer um curso de Estudos Sociais, para dar aula de Geografia e História, depois fiz licenciatura plena em Geografia.

Quando voltei ao Brasil, trabalhei nos Cadernos do Terceiro Mundo, que era de um amigo do meu pai. Então era registrada como Jornalista. E foi escrevendo que comecei a ganhar meu próprio dinheiro. Tornei-me Jornalista por força da Lei, nunca freqüentei uma Faculdade de Jornalismo.

Em 1980, nasceu minha última filha biológica. Decidi não ter mais filhos.

Adotamos mais duas filhas na Bahia. Estão todos adultos e bem encaminhados.

Eu e o pai deles somos grandes amigos e procuramos sempre reunir a família, já temos um neto. Mas o casamento acabou em 1991

PROCURANDO RESGATAR MEU SONHO....

Separada, depois de ter me dedicado anos a militância em Direitos Humanos, a família e aos estudos, decidi sair do RJ e ir para uma capital menor, onde poderia me sustentar e estudar, me aperfeiçoar. Eu ainda queria ser professora. Fiz ainda doutorado em Ciências Humanas na Universidade de São Paulo, defendendo a Tese MEMÓRIA DA DOR – A Operação Condor no Brasil (1973-1984)

Escolhi Natal no Rio Grande do Norte. Vivi muitos anos lá. Os filhos iam e vinham embora já fossem grandes. Uma de minhas filhas resolveu ficar no Nordeste, mora no Ceará com o marido. Não pretende sair do Nordeste.

Em Natal estudei, trabalhei e quando saiu à indenização do meu pai adotei mais três crianças, optei por crianças que ninguém queria. O mais velho, é esquizofrênico, mora numa Instituição, já adotei com quatro anos, pois ele era muito maltratado no orfanato que vivia em função de sua doença. Os outros dois, o menino vai fazer dez anos e a menina acaba de fazer oito, moram comigo.

Comprei uma casa com jardim, numa cidade quente e hospitaleira....

SE RESGATEI MEU SONHO?

Não. Meus sonhos se perderam nas noites de angústia ao pensar em tudo que meu pai e seus companheiros passaram. Então decidi voltar para o Rio de Janeiro onde minha mãe e irmãos acabaram se estabelecendo.

Desisti de recuperar a infância e a adolescência e até os sonhos de mulher adulta, roubados pelo seqüestro e brutal assassinato do meu pai e perseguições contra nossa família. Decidi conviver com o pesadelo. Procuro fazer o melhor que posso. Mas não há um dezembro, um aniversário meu, que eu não reviva aqueles momentos de terror que afinal persistem com a insistência da não devolução dos restos mortais do meu pai.

MAS EU NÃO DESISTI....

Hoje moro num apartamento sem jardim, sou professora, cuido dos meus filhos. Mas, esquecer jamais. Para mim a busca continua e a Luta do meu pai também.

Sou Presidente do Centro de Educação Popular e Pesquisas Econômicas e Sociais – CEPPES, entidade voltada à educação da população carente ou não. Visando ainda o resgate da História e da Cultura Brasileira. Oferece Cursos e Assessorias a Entidades, ONG’s, Sindicatos e outras. Realiza palestras e cursos de Extensão Universitários. O CEPPES tem como Presidente de Honra o arquiteto Oscar Niemeyer. Edita e publica a revista trimestral Ciência e Luta de Classes, da qual faço parte do Conselho Editorial. A entidade não tem fins lucrativos.

Tenho certeza que o resgate da História deveria ocupar um espaço prioritário no atual momento em que vive a humanidade, até pelo jogo de questões e interesses que se colocam no atual estágio do capitalismo diante de mais uma crise de contradições e paradigmas.

Acredito que ensinar a aprender é uma atitude revolucionária e único caminho de propiciar ao indivíduo o caminho de sua libertação.

Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 2007.

Neusah Cerveira